O que você faria se tivesse de enfrentar a vida às escuras? Ter que se deslocar pela cidade sem enxergar nada? O que você faria se tivesse família para cuidar, filhos para criar, tarefas a executar, sem a visão para lhe auxiliar?
Esta é a história do casal Edna e Bené, que se conheceram sem nunca um ter visto o rosto do outro. E que vivem juntos há 17 anos, morando sob o mesmo teto, sem nunca um ter visto o sorriso do outro.
Mas que nem por isso deixam de lado o prazer e a alegria de viver. E que, ainda por cima, dão uma lição de moral e de amor à vida do tamanho da nossa limitação.
Edna Vera
Uma mulher que tem uma beleza incrível, por dentro e por fora. A força de vontade de Edna é perceptível, sem que seja necessário olhar para ela da forma convencional. Basta trocar algumas palavras, para se ter uma ideia do quanto estamos longe de ter a força que há naquele coração.
Quando sua mãe estava grávida, aos 5 meses de gestação, levou um coice de um carneiro, na barriga. Alguns médicos, à época, chegaram a cogitar possibilidades nada otimistas para aquele bebê ainda em formação. Poderia ter nascido tetraplégica, poderia ter uma má formação cerebral e sofrer de alguma deficiência da mente, ou mesmo ser concebida morta. Mas o único órgão do feto atingido no acidente, como milagre, foram os olhos. Edna nasceu perfeita, na cidade de Santa Quitéria, interior do Estado, não fosse a ausência de um dos globos oculares e um rasgo no outro olho. Nascera com a deficiência visual, mas só pelo fato de nascer, já era grata. "A visão é supérflua. Sempre lutei pelos meus objetivos e, graças a Deus, sempre consegui", afirma Edna Vera.
Aos 14 anos veio morar em Fortaleza, a convite da irmã mais velha. Para que ela veio? Para ser mais uma vítima do infortúnio e da maldição dos céus? Não. Ela veio como a boa samaritana: veio para servir. Na casa da irmã, era Edna quem cuidava do seu sobrinho recém-nascido. "Minha mãe não queria deixar, achava que eu ia matar o menino engasgado com mingau", lembra, aos risos. "Ela não acreditava muito, não confiava, mas meu pai liberou e ela acabou liberando também".
Sem parar
E o que mais esperar de uma pessoa deficiente, morando na Capital, cuidando do sobrinho pequeno? Alçar voos mais altos. Edna aprendeu a andar de bicileta, fez natação e, estudou muito: é formada em Pedagogia e possui pós-graduação em Psicopedagogia. É mole?!
Aos 21 anos, começou a morar só. "Sempre quebrando as barreiras", diz. Nunca aceitou a limitação. "Quando criança, minha mãe me colocava sentada e dizia: 'não saia daí', com medo de eu me machucar. Mas eu desobedecia. Não queria aquela limitação para mim".
Bené Viana
O ano era 1972. Ele veio para a Capital, para estudar. Nascido em Sobral, desde criança é portador de Glaucoma, que é uma lesão nas fibras do nervo óptico. Ainda pequeno, perdeu a visão.
"Costumo encarar e superar as barreiras. Não sou muito de parar para uma barreira quando tenho um ideal, quando tenho um objetivo". Hoje, ele é funcionário público estadual, anda sozinho pela cidade, de ônibus em ônibus, trabalhando e superando todos os obstáculos que a vida lhe impõe. Logo após nossa entrevista, por exemplo, ao deixar a esposa na parade de ônibus, saiu e foi buscar um colega, também cego, que não queria andar sozinho.
O casal
Edna e Bené se conheceram no Instituto dos Cegos, quando a moça ainda estudava lá. E como tudo começou? De uma bela amizade. "Na época eu não gostei, achei ele 'enxerido'. Não dava certo comigo não", lembra, sorrindo e virando para o lado, como se quisesse perceber o que seu marido estava pensando. "Nos aproximamos quando ele foi morar no meu bairro, porque eu era amiga do irmão dele", diz.
Bené já foi casado, e quando se separou da primeira esposa, foi que Edna se aproximou. "Acabei ficando com pena, ele estava sofrendo muito, aquela coisa... e terminamos nos envolvendo".
Construindo uma família
E o amor nasceu. E deste amor, três filhos: Evelma, 17; Everbênia, 15 e Everlã, 12 anos de idade. Ah, e apesar do pai ser portador de Glaucoma, nenhum dos filhos tem deficiência alguma. São três crianças saudáveis, perfeitas e lindas. E que se inspiram na força de vontade dos pais, exemplos de vida e de persistência.
"Família, para mim, é compartilhar. É muito íntimo, é não ter segredo", define Bené.
E como é dentro de casa?
"Lá em casa eu gosto muito de serviço doméstico, e nós não deixamos que eles tenham dó de nós. Sempre mostramos para eles que nós somos capazes de enfrentar qualquer dificuldade, qualquer problema. Que nós somos capazes de acompanhá-los. Nunca deixamos aquela imagem de que não pudéssemos resolver, que não pudéssemos dar o apoio a eles", explica o pai da família.
Deu pra entender o recado? O chefe da casa explica melhor: "Nós nunca botamos alguém em casa, sempre cuidamos sozinhos dos filhos. Sempre enfrentamos as dificuldades, as doenças dos meninos, só eu e ela. Nós nunca botamos uma pessoa para cuidar das crianças. Desde que nasceram, que chegaram da maternidade, nós cuidamos sozinhos".
Sociedade
Uma das maiores dificuldades para o casal é lidar com o preconceito da sociedade. "Já fui barrada várias vezes em porta de hospital, levando os meninos doentes, porque sou cega. Eles diziam que só tinha direito a um acompanhante e eu dizia: 'a mãe sou eu, quem vai entrar sou eu!' E graças a Deus até hoje tenho dado conta", afirma Edna, um pouco incomodada com a lembrança da situação.
"Muitas vezes, as pessoas tentam nos ajudar a subir num ônibus, numa travessia de rua, mas não sabem a forma adequada de ajudar. Tem pessoa que nos trata como se fóssemos deficientes das pernas, quer pegar pelo braço, levantar e colocar lá em cima, ou pega o braço da gente e ergue. Parece que vai nos empendurar pela mão!", comenta, dando risada de tudo. "Eu vejo isso como falta de conhecimento", pondera.
Para Bené, o problema é a falta de conhecimento. "Nós não temos um sistema de campanha adequada para que as pessoas conheçam a realidade das pessoas com deficiência. Muita gente ainda pensa que tem que nos dar comida na boca, ajudar a banhar, e não é assim".
E o homem vai além, e diz que uma parcela de culpa deste desconhecimento da sociedade é dos próprios deficientes. "A gente se esconde muito. Temos que nos colocar mais à disposição das pessoas, a responder perguntas".
Mas este não é o pior caso não. "Outros tem aquela mentalidade de que o deficiente é para ficar pedindo esmola, ou no fundo de uma rede, ou num canto qualquer. Não acham que o deficiente tem a eficiência de viver sua vida sem essa dependência total", comenta Edna. "O limite maior está dentro de nós", explica Bené. "Se quebrar as barreiras internas, vai longe", ensina.
Felicidade
E será que isso abala a felicidade ou a vontade de viver, ou até a experiência deles com o mundo? Nada disso. Edna esbanja força de vontade e garra ao afirmar seu estado de espírito: "De modo geral, eu sou feliz. Tenho minhas dificuldades, mas eu sou feliz.", encerra a psicopedagoga.
"Na área da deficiência, a gente é feliz. A deficiência não nos impede de ser feliz, de viver aventuras. A deficiência não te impede de viver uma vida normal, apenas traz algumas limitações que podem ser superadas, principalmente com as novas tecnologias. A felicidade vem de dentro de cada um, da maneira de nós superarmos os limites que nós criamos dentro de nós mesmos. Eu sou feliz, graças a Deus", conclui o funcionário público.
Eles não enxergam o mundo como nós. Os olhos deles, não são de carne, mas de sentimentos. O mesmo sentimento de força e determinação que muitas vezes falta a nós, que nos consideramos aptos a tudo, e que na verdade somos os maiores incapazes no final dessa história.
Diário do Nordeste